sexta-feira, 20 de novembro de 2009

JORNAL Nº.3 "O ESTILHAÇO"


Capa do Jornal nº.3 - 1971


NOTA DA REDACÇÃO

Estilhaço nunca gozou de saúde.
A sua delicada constituição só lhe permitiu mostrar-se duas vezes em público.
É então agora, com esta mudança de ares, das matas de Bessa Monteiro para os planaltos luquembistas, infestados de pântanos e mosquitos, quebrado pela saudade da família que deixava lá no norte, atacado pelo paludismo, o pobre do "Estilhaço" ficou muito combalido. De tal maneira que o público o julgava já morto e enterrado.
Mas qual quê? Vieram as chuvas, a natureza rejuvenesceu, começou um ano novo, chegou-lhe aos ouvidos que Baca vinha cá para baixo, e ei-lo de novo espevitado, com vontade de sair à rua, e conhecer os novos membros da família que ele vagamente sabe que moram lá para as bandas mais do sul em locais turísticos, nas margens de rios de águas cristalinas e quedas deslumbrantes.
Saído da convalescença "Estilhaço" saúda esses parentes com carinho e deseja-lhes muitas felicidades para o ano 1971 que já começa a gatinhar. Deseja igualmente felicidades e boas vindas aos "bacanos" que se lhe vieram juntar, pelo que se sente muito feliz. Mas a sua saudação principal vai para os quibalenses e "sessenta e um" que ficaram entre as pacaças das matas Sangas , Loaias e quejandas. A todos um abraço de "Estilhaço". E escrevam e mandem notícias. Será a melhor maneira de lhe darem saúde e ajudá-lo a passar os últimos meses da sua "velhice".



OPERAÇÃO DIABO

Íamos nós muito sossegados da vida, saboreando o fresco da noite e conversando sobre acontecimentos  do dia a dia, quando apareceu a cabra.
Parou o Unimog. Parou a cabra. Parou a nossa conversa.
Ficamos todos a olhar uns para os outros, à espera da primeira reacção, e esta pertenceu à cabra. Desatou a correr, a correr, a dar voltas ao carro, cada vez mais perto, tão perto que ficámos a pensar quanto é que ela se vinha meter debaixo de nós, até que desistiu da ideia e lá partiu para não mais a vermos.
Vai daí grita o Sousa:
Ai nossa Senhora, que isto não é cabra nenhuma! Isto é mas é o diabo! - vocês vão ver, que nos havemos de atascar todos tantas vezes quantas voltas a cobra deu ao carro!
Rimos todos, mas a "Anhara", o quarto inimigo da nossa guerra, é que não largou a sugestão, e passados uns cem metros, zás, estávamos "emboscados".
Reacção enérgica! Heróica mesmo! Uma boa meia hora de luta, puxa daqui, levanta de acolá, até que o Unimog lá conseguiu um aceno de força, e todos nós ficámos a rir do nosso inimigo, isto é, todos menos o Sousa, que voltou com o diabo da cabra baila e nos lembrou que ainda haveria muitos "atascanços", até se completarem as voltas que o bicho deu em volta do carro.
E, palavras não eram ditas, volta o inimigo à carga, redobrado de energias, na razão inversa das nossas depauperadas forças.
E era ver-nos. O Unimog a gritar: "Tiram-me daqui" A "Anhara" gritar: é o tirar!..." E nós a fazer contas à vida e a pensar quantas voltas teria dado o raio da cabra em volta do carro.
Resultado: estávamos mesmo na "zona da morte" da emboscada inimiga.
Dali para fora só com reforços.
E, à falta do tractor do "Bolinhas", foi nomeado o "Bolinhas" sem tractor, para um "patrulhamento ofensivo" até à Sanzala mais próximo. (E mal sabíamos o "Bolinhas" e nós, que o próximo era só quinze quilómetros).
Lá nos despedimos dele e do seu par, como quem se despede de uma filha que vai para o casamento, à espera que ele nos trouxesse herdeiros para continuar a família, que é como quem diz, reforços para continuar a viagem.
Entretanto ficámos  os restantes em socorro do nosso ferido em combate, a tentar prolongar-lhe a vida com "injecções de macaco", ligaduras de troncos de árvore, palmadinhas no motor de arranque e tratamentos do género. E até lhe prometemos um "Unimog fêmea", a ver se ele não se ia abaixo. Mas nem assim. Estava mesmo nas últimas...
Quem não gostou nada da nossa reacção foi a "Anhara".
Se nós pedimos reforços, também ela o fez. E foi ver chegar um exército de mosquitos, também instruídos, tão violentos, que eu só desejava coçar-me e não me esquecer de no dia seguinte tomar dois "daraprins".
Mas as horas passavam-se, as estrelas desapareciam no céu, e de "Bolinhas", nada. Ao romper do dia retiraram os mosquitos com algumas baixas em combate, diga-se em abono da verdade, ficámos a olhar para o nosso pobre Unimog enterrado até ao pescoço, que é como quem diz com o eixo assente no chão, e rodeado de paus por todos os lados, menos por um, que nesse assentavam as rodas.
E do "Bolinhas"... NADA.
Mas tudo tem um fim, mesmo a vitória do nosso inimigo.
Comandando um exército de dezoito milícias, (com um estafeta de bicicleta à frente, não fossemos nós estar mal dispostos) apeados e armados, chega o nosso "Bolinhas".
E até nos esquecemos da noite sem dormir, dos mosquitos sem piedade e do carro sem forças para vencer a "Anhara" porque, a partir de então, até me lembrei das minhas saídas dum Sporting-Benfica: umas vezes no ar, outras com os pés a arrastar pelo chão, só dava por mim quando estava fora do estádio, pois os outros lá se encarregavam de me empurrar para os portões de saída.
E fora do buraco, foi uma festa ver os dezoito milícias a bater palmas a eles mesmo e nós a acompanhá-los com gosto nessa manifestação de alegria.
Que diabo: O caso não era para menos, depois de uma guerra daquelas.
Até o Sousa acabou por rectificar a sua opinião, não negando que a cabra não fosse o diabo, que disso não tinha ele dúvidas, mas concluindo que afinal a praga que ele nos lançara, não era bem o número de "atascanços", mas sim o número de horas que tínhamos sido obrigados a parar na sua companhia, isto é, dos seus servos mosquitos, porque lá o diabo da cabra ou a cabra do diabo, essa tratou mas foi de pôr-se a milhas porque se a apanhávamos outra vez... levava chumbo. Apanhava, apanhava, lá isso "jura mesmo".
Autor,
Cardoso de Almeida
Major de Artª.
            




 Somos velhinhos! Não há duvidas que nos nossos largos meses de Angola já estão carregados de acontecimentos. Não há dúvidas que já começamos a olhar para o passado, para as terras por onde andámos, as picadas que percorremos, os factos mais ou menos importantes que nos ficaram gravados na mente, os momentos agradáveis e difíceis que nos deixaram marcados. Começamos a recordar e o recordar é sinal de velhice. Somos velhinhos!

Costuma ser a velhice sinal de maturidade, bom senso, prudência, respeito e muitas outras virtudes.

Na gíria militar, porém "velhinho" parece significar totalmente o contrário.

Velhinho é aquele que se emancipou de todas as lei e regras militares.
 Velhinho é aquele que sabe lidar com os nativos - fazer o seu contrabando nas sanzalas e olhar para tudo e todos com ar superior.    
Velhinho é aquele que perdeu a vergonha, o que não é mau, mas que se tornou "desavergonhado" o que é péssimo.

Se ser "velhinho" significa isso, não te importes de ser maçarico durante 24 meses.

Mas não, trata de ser "velhinho" no sentido positivo. A tua maior experiência certamente que te ensinou a necessidade de ordem e disciplina, de boa educação e respeito pelos outros. Se os teus sentimentos são nobres, o contacto com as populações só te pode levar a um maior desejo de as servir e ajudar e não de as explorar seja sob que aspecto for. Poderá no fim dizer que SERVISTE, que deste o teu contributo para o progresso dos povos de Angola. E só isto poderá dar verdadeiro orgulho e alegria.
Autor.
António Morais
Tenente Capelão 



Contracapa do Jornal nº.3 - 1971




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